sexta-feira, julho 04, 2014

Ideias para melhorar o estado da nação


Quando nos perguntamos pelo estado da nação, por mais voltas que demos, é difícil evitar dizer que vai mal. Já esteve pior. Há progressos. Números menos maus. O desemprego desce, mas o emprego não sobe. O horizonte continua demasiado incerto. Portugal mingua de gente, sobretudo dos mais novos. Nestes tempos sombrios, mais do que acentuar a pouca luz, talvez valha a pena alinhar algumas ideias que podem melhorar o estado da nação:
1. Reduzir prazos. O Presidente da República devia antecipar as eleições legislativas para o início do próximo ano. O país corre o risco da paralisia política e económica se o calendário se mantiver. Uma antecipação permitiria a formação de um governo antes do chefe do Estado ficar tolhido pelas presidenciais. Permitiria também um Orçamento do Estado de 2016 concebido a tempo e da responsabilidade do governo que terá de o executar.
2. Reduzir prazos. Os prazos eleitorais, para a formação de governos ou para a apresentação e discussão de programas, orçamentos… são de um exagero comprovado, lamentado, mas nunca alterado. Não quererá o Presidente tomar a iniciativa?
3. Reduzir prazos. A resolução da crise de liderança no PS tem um prazo absurdo. E não estou certo de que a crise esteja resolvida no dia 28 de Setembro, data do referendo para o candidato a primeiro-ministro… Um partido que ocupa meses e meses para resolver os seus problemas internos não dá grandes garantias ao país. O PS faria bem em olhar para o seu irmão PSOE. Em Espanha, o mês de Julho é suficiente para fazer uma campanha interna, eleger o secretário-geral e fazer um congresso extraordinário.
4. Reduzir prazos. Num país tão necessitado de investimento interno e externo, os prazos para licenciamento de projetos são intermináveis. Dezenas de pareceres, uns com prazo, outros sem prazo… convites à corrupção ou à desistência. Será tão difícil exigir prazos, encurtar prazos e o seu cumprimento?
5. Acabar com o discurso de cortes e mais cortes orçamentais que raramente correspondem à realidade, seja por excesso, seja por defeito. Falta critério, rigor, sentido estratégico. Sobram casuísmo e voluntarismo. Trocam-se cortes por cortes sem que correspondam a transformações estruturais com coerência global. Depois admiram-se com o Tribunal Constitucional…
6. Acabar com o discurso grandiloquente do admirável mundo novo a que chegámos ou a que vamos chegar. Esperança sim. Eufemismos não. Prometer «pleno emprego» e «multiplicação de oportunidades» é capaz de ser um pouco exagerado… Tal como prometer aumentos salariais, reduzir impostos e acabar com cortes, sem mais.
7. Acabar com o PBEC, processo de burocratização em curso. Falar em qualidade do atendimento, dinamização de lojas do cidadão ou em chaves móveis digitais quando fecham postos de atendimento e crescem filas à porta de serviços públicos é uma provocação insuportável. A crise fez aumentar a burocracia, quando devia ter acontecido o contrário. Sempre que consulto o meu médico de família ele tem menos tempo para falar comigo e me olhar nos olhos. O computador e os formulários ocupam-lhe cada vez mais a atenção.
9. Investir na previsibilidade. O mundo já é, por natureza, demasiado incerto para nos darmos ao luxo de acrescentar incerteza sem justificação. Não poderemos ser mais previsíveis na fiscalidade, na justiça (tantas vezes desesperadamente prescrita), nos programas escolares, na avaliação, na regulação?...
10. Investir na ciência e na inovação. É por aqui que podemos dar saltos qualitativos de desenvolvimento. As alterações introduzidas nas políticas governamentais contrariam as orientações que possibilitaram os bons resultados dos últimos anos.
11. Ter voz ativa na União Europeia. Procurar alinhamentos úteis. O discurso do primeiro-ministro italiano Matteo Renzi, esta semana no Parlamento Europeu, merece apoio. E consequência. A paralisia apenas nos aproxima do abismo. Já chega!
(AntónioJosé Teixeira-Expresso)

terça-feira, junho 10, 2014

Mia Couto e Águalusa


“Muxima” é a palavra que em quimbundo designa “coração”. E “amigo”, como se diz? Que palavras dizem a amizade de José Eduardo Agualusa e Mia Couto? Alguns pontos de uma genética comum: livros, identidade, a vida secreta das plantas, as cores que temos e que uma menina de quatro anos vê e um adulto não vê. Mas esta é a maneira poética de ler as suas vidas. Falta a guerra, as guerras, a procura de respostas, o empenhamento cívico e político. A felicidade que floresceu na infância, apesar do horror.
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São criaturas de fronteira.

Mia Couto, nascido António, em Moçambique, já disse de si: “Sou um branco que é africano; um ateu não praticante; um poeta que escreve prosa; um homem que tem nome de mulher; um cientista que tem poucas certezas na ciência; um escritor numa terra de oralidade.”

José Eduardo Agualusa é um “angolano em viagem, quase sem raça”. Se a raça vier do ar e do chão, é da raça dos pássaros e das árvores.

São amigos há tanto tempo que parece uma amizade de sempre. Têm percursos quase coincidentes, apesar da especificidade das suas histórias e da dos seus países. Mia nasceu em 1955, Agualusa em 1960.

Nesta semana, Agualusa lançou o romance histórico Rainha Ginga — E de como os Africanos Inventaram o Mundo. Mia fez a apresentação.

A entrevista foi na casa de Agualusa. Mia, não surpreendentemente, estava em casa. É preciso dizer que se riem muito. Um do outro, de si próprios, de imbecilidades (a palavra é deles). Os risos são muito mais recorrentes do que aqueles que são anotados no texto. Porquê? Deve ser da graça que encontram no mundo. (Graça no dicionário: mercê, benefício, dádiva; benevolência, estima, boa vontade; beleza, elegância.)

Qual é a palavra de que mais gosta em quimbundo? Pode ser pela sonoridade ou pelo conteúdo.
Agualusa — Sou da zona do umbundo, o Huambo. O quimbundo tem uma tradição escrita que o umbundo não tem. Ainda cheguei a aprender quimbundo. É mais fácil responder em umbundo: ombembua. Significa “paz”.

O som de ombembua faz-me pensar numa nuvem.
Mia — Flutua.
Agualusa — É uma língua inventada pelos pássaros.
Mia — É piado.

Mia, o biólogo e inventor de palavras, fala a língua dos pássaros? Qual é a palavra de que mais gosta num dialecto moçambicano?
Mia — Estou a aprender aquilo a que presunçosamente chamaria “a língua da vida”. O que me apaixona na Biologia é a parte linguística, não é a parte científica. No sentido de decifrar códigos. Há linguagens que estão ali, presentes, e a gente está surda. E cega.

Por exemplo.
Mia — Fui-me apercebendo com mais clareza como é que as plantas dizem coisas. Têm de as dizer porque têm relações simbióticas com pássaros, com morcegos, por causa da polinização. Quando um fruto muda de cor, está a dizer que aquele é o momento. Está a falar connosco. Isso, o cheiro, são formas de diálogo.
Agualusa — O fruto é mesmo para ser colhido e disseminado. Diz: “Vem comer-me e propaga-me.” Concordo com o Mia. Pensamos que as coisas estão ocultas, os grandes segredos, e está tudo à luz do sol. Não somos capazes de ver. As crianças muitas vezes vêem.

Os adultos não vêem?
Agualusa — Nalguns casos, vêem à medida que envelhecem. As crianças vêem o evidente. Costumo contar uma história da minha filha, de quando era bem pequenina. Uma senhora fez-lhe uma pergunta muito idiota. “De que raça és tu?” Ela não entendeu. Não tinha sequer o conceito de raça. A senhora tentou corrigir a pergunta, errando ainda mais. “De que cor és tu?” A minha filha olhou muito espantada. “Mas tu não vês que sou uma menina? As meninas são pessoas. As pessoas têm cores diferentes. A minha língua é vermelha, os meus dentes são brancos, o meu cabelo é castanho.” Temos todas as cores. É preciso uma criança de quatro anos para dizer o óbvio.

Como é que perdemos a capacidade de ouvir, ver, ler o mundo? Tem que ver com a perda da inocência? Junto a experiência do medo. Eram muito jovens, um e outro, quando viveram a guerra dos vossos países. Não consigo imaginar o que é ter 15 anos e ter a guerra a rebentar à porta. Ou 22.
Agualusa — Éramos mais novos. Eu nasci com a guerra, em 1960.

A guerra fratricida começa mais tarde, quando está na adolescência. Aquela que está lá, antes disso, é a guerra colonial.
Agualusa — Tenho a noção da presença da guerra no meu quotidiano desde sempre. A questão é essa: quando temos desde sempre, também olhamos para a guerra de uma outra maneira. O meu pai trabalhava nos caminhos-de-ferro.
Mia — O meu pai também.
Agualusa — O meu pai começou a dar aulas às populações ao longo da linha do caminho-de-ferro. Tinha um vagão especial, com uma sala de aulas.

    Tenho a noção da presença da guerra no meu quotidiano desde sempre. A questão é essa: quando temos desde sempre, também olhamos para a guerra de uma outra maneira
    José Eduardo Agualusa

Como era o vagão?
Agualusa — Muito bonito. A companhia era inglesa, vagões em mogno, com salões, quartos. Tinha um quarto para mim e para a minha irmã, com beliches. Havia um cozinheiro, uma cozinha, sala de jantar. Nas férias, acompanhávamos o meu pai. Lembro-me muito bem de o comboio ser atacado. Várias vezes. Descarrilavam os comboios, et cetera. O caminho-de-ferro de Benguela era a principal empresa, na época. Portanto, um interesse estratégico. Tu deves ter sentido o mesmo.
Mia — Sim.
Agualusa — Toda a minha infância teve a guerra como pano de fundo. Não estava dentro das casas. Estava ali ao lado.
Mia — A guerra que não está ao lado de casa chega através de vozes e de histórias. Coisas que assumem um carácter ficcional. Com nove anos, ouvia falar do que se passava na guerra de libertação nacional.

Além da guerra, estava lá desde sempre o quadro colonial.
Agualusa — A violência, a injustiça colonial... Se eu, uma criança privilegiada, fui afectado por isso (são memórias que tenho até hoje), imagino o menino...
Mia — ... que sofria do outro lado do muro.
Agualusa — Custa-me muito ouvir um certo saudosismo colonial. O discurso do retornado com saudade de África. Como se fosse um paraíso intocado.
Mia — Como se fosse diferente. [Porque] “os portugueses nunca fizeram como os outros”.
Agualusa — Era uma sociedade profundamente distorcida, e só não via quem fosse completamente cego. Era explícito para uma criança de poucos anos.

Não era preciso que lhe explicassem ou chamassem a atenção?
Mia — Não.
Agualusa — Estava exposto. Era obsceno.
Mia — O sentimento de inocência, ali, perdia-se rapidamente.
Agualusa — Antes da guerra, percebíamos a violência colonial, a injustiça colonial.

Era uma discriminação de que tipo, para começar?
Agualusa — De todo o tipo. O colonialismo é feito com pessoas. Pessoas boas e pessoas más. Os sistemas maus puxam pelo pior das pessoas. O sistema colonial é um sistema de dominação. Se não, não é um sistema colonial. E a qualquer reacção, a pessoa era considerada terrorista. Ouvi “terrorista” ou “turra” contra pessoas que não eram nem estavam ligadas ao movimento nacionalista. Eram simplesmente pessoas que contestavam uma injustiça.

    Precisamos de ter medos porque os medos nos conduzem. É um alerta, um sistema de avisos. O problema é quando os medos nos dominam, nos paralisam
    Mia Couto

Conte-me da sua experiência em Moçambique.
Mia — É muito semelhante. Vivia numa cidade, que, sendo a segunda de Moçambique, era pequena. Na Beira, esse carácter colonial estava tão à flor da pele que ninguém teve de me explicar nada. Quando tenho consciência do mundo e tenho de tomar partido, já sabia quem eu era e o que é que ia fazer.

Militou na Frelimo muito cedo.
Mia — Quando vou para a universidade, com 17 anos, sabia que não ia estudar. Sabia que ia aderir ao movimento de libertação nacional. Não porque tivesse sido doutrinado. Mas por aquilo que vivi. Sabia que queria fazer uma ruptura completa com o passado. Devo dizer uma coisa: fui muito feliz nesta infância. Tive uma infância infinita.

Como é que se inventa esse espaço para a felicidade?
Agualusa — Porque se cria. Porque as coisas acontecem assim. Mesmo durante o período de maior violência, pode-se ser feliz. Também fui muito feliz na infância.
Mia — Imagina que era outro tipo de violência... O espaço da minha casa era de grande afecto.
Agualusa — O da minha casa, também.
Mia — Se calhar era pior ter a experiência da violência interna, dentro de casa.
Agualusa — Com certeza. Fui muito protegido. Tive uma família sem... história.

Parece uma coisa terrível, uma família sem história. E afinal não.
Mia — Antes isso do que uma história sem família.

Já voltamos à felicidade na infância. Antes: sentia discriminação pelo facto se ser branco?
Mia — Sim. Havia várias discriminações. Na cidade, circulavam autocarros. Na África do Sul, estava escrito “Negros/Não Negros”. Ali não estava escrito, mas era assim que se vivia. Não era preciso escrever. Estava escrito dentro da cabeça das pessoas. Sabia-se que um negro nunca podia sentar-se no banco da frente. Havia um banco traseiro, corrido, que era o lugar onde ficavam os negros. Outra discriminação: não havia “os brancos”. Havia os brancos de primeira e os brancos de segunda. Os brancos de segunda (era o meu caso) nunca poderiam chegar a chefe da função pública.

Tinha que ver com dinheiro e status, essa discriminação?
Mia — Tinha que ver com nascimento, com os que já nasciam na colónia. Esses eram os brancos de segunda classe.
Agualusa — Isso chegou a ser uma coisa instituída. Havia os assimilados, os brancos de segunda, os brancos de primeira.
Mia — Os assimilados eram portugueses de pele preta.
Agualusa — Era uma coisa horrível! A pessoa tinha de provar que comia de garfo e faca.
Mia — Além das boas maneiras, tinha de ser católico, monógamo.

A marca do dinheiro era notória? Havia colégios em Moçambique frequentados por portugueses brancos e goeses. A distinção aí não era em função da cor.
Mia — Mesmo entre os goeses havia uma discriminação enorme. O goês tinha direito a pertencer a um certo clube social em função da sua casta. Havia vários clubes. Bastava dizer: “Sou do clube indo-português”, e sabia logo qual era o estatuto social daquele fulano.
Agualusa — É legítimo pensar (é o pensamento comum) que em Moçambique havia mais discriminação (não instituída, mas havia) do que em Angola?
Mia — Não sei comparar, mas acredito que sim. Por causa da influência directa da África do Sul e da Rodésia.

Um momento de felicidade da infância: que é que primeiro vos ocorre?
Agualusa — Não tive momentos. Tive imensos momentos. Tinha um quintal enorme. Cães. Brincava muito sozinho. Inventava mundo sozinho. O meu espaço de felicidade era esse quintal. Além disso, a minha casa era o limite da cidade. À frente, não havia nada. Vivi nesse infinito. Fui uma criança com um pé no asfalto e um pé no mato.
Mia — Sabes, a varanda colonial que circundava a casa e que fazia a transição? Nunca percebi bem o que era o dentro e o fora. Havia uma porta de rede, batente. Sabíamos que saímos de casa porque ouvíamos aquela porta bater. Nunca percebíamos se estávamos dentro ou fora. Foi uma coisa muito mágica.

Isso dura até quando? O que caracteriza essa noção de infinito, o não haver barreiras, é a ausência de medo, de ameaça. Ou não?
Mia — Ausência de medo é uma coisa que funciona bem para caracterizar aquilo. Não?
Agualusa — Não estou seguro. A minha filha diz-me uma coisa sobre o ser criança. Primeiro, há sempre alguém que manda em nós. Crescer é deixar de ter alguém a mandar em nós. Ou ter menos pessoas a mandar em nós. Diminui a cadeia de comando. A outra coisa é o medo. O medo está muito presente nas crianças. Vamos perdendo medos à medida que crescemos. Não?
Mia — Vais mudando de medos.
Agualusa — Não sei se não vais mesmo atenuando os medos.
Mia — Tínhamos medos. É melhor confessar!
Agualusa — Tínhamos medos e éramos felizes!
Mia — Eram medos domesticáveis. Medo do escuro. Vinguei-me quando fiz um primeiro livro para crianças [O Gato e o Escuro]. O medo cumpre a função de primeiro grande conselheiro.

Não entendo.
Mia — Precisamos de ter medos porque os medos nos conduzem. É um alerta, um sistema de avisos. O problema é quando os medos nos dominam, nos paralisam.
Agualusa — Tive uma professora especial, de uma família nacionalista, uma senhora de grande coragem. Não tive de aprender a geografia ou a história portuguesas. Não tínhamos Salazar na parede. Estudávamos poesia angolana. Ela criou o seu próprio programa de ensino. Em contrapartida, era muito violenta. Vivia no terror de ir ao quadro. Passámos tormentos que hoje seriam impossíveis.

Fez alguma redacção, para essa professora ou outra, de que se lembre especialmente? Em relação à qual tenham dito: “Que bem escreve.”
Agualusa — Não tenho a menor ideia. Era considerado um mau aluno. Estava na chamada fila dos burros irrecuperáveis.

Nunca teve essa ideia de si próprio, pois não? A sério.
Agualusa — Não me achava muito inteligente. A minha irmã era muito mais inteligente do que eu. Fazia tudo mais depressa, melhor.
Mia — Eu também vivi essa situação.

Estão a fazer género, os dois.
Agualusa e Mia — Não! [gargalhada]
Agualusa — Fui melhorando. Eu era feliz em casa. E inventava.

Inventava dentro da sua cabeça ou já escrevendo alguma coisa? Quando pergunto por uma redacção, tento compreender quando estabelece uma relação com a palavra escrita.
Agualusa — Mais tarde, muito mais tarde. É preciso ler muito [para escrever].

Como foi consigo, Mia?
Mia — Era mau aluno e a escola foi penosa. Apurei o sentido de não estar no lugar [onde efectivamente estava] na escola.
Agualusa — Eu também!
Mia — Isso foi uma escola fantástica. De alheamento. Com os olhos abertos, fingindo estar atento. É uma coisa que procuro ensinar aos meus filhos: a capacidade de não estar.
Agualusa — É uma coisa de budista avançado.
Mia — A escrever comecei cedo. A única coisa que me salvava de ter nota negativa a Português era a redacção.
Agualusa — A minha mãe era professora de Português. Tinha muitos livros em casa. Também devias ter. O teu pai era poeta. Não me proibiam o acesso aos livros. Lemos os livros que podemos ler. Pegamos num livro e percebemos se é para nós ou não. Tento fazer isso com os meus filhos. Li dicionários e enciclopédias. Tenho ali dois tomos de uma enciclopédia que os meus pais me deram há pouco tempo, porque eu tinha muitas saudades daquela enciclopédia, uma Lello Universal. [Levanta-se e vai buscar.]

Edição dos anos 1930, com figuras, capa dura. Linda.
Agualusa — Nesta enciclopédia, o Fernando Pessoa tinha morrido há pouco tempo e só tem direito a duas linhas. Para se ver que não lhe davam muita atenção. O Hitler ainda é tratado com benevolência.

E assim se aprende o mundo. Ando às voltas para tentar saber de onde vem o vosso mundo fantástico.
Mia — Posso contar uma história da escola? Tinha um professor magro, alto, que um dia leu uma redacção que fez. Era uma redacção para a mãe dele. Sobre as mãos da mãe dele. Comoveu-me tanto. Era estranho. Ele também estava comovido. Tinha uma relação de paixão com o texto. Falava das mãos da mãe como eu pensei que podia falar das mãos da minha mãe. As mãos da mãe dele só tinham marcas. Do tempo, do trabalho. Aquilo foi importantíssimo. Aquele professor ficou um menino frágil.

Esse professor era o Zeca Afonso? Sei que foi aluno dele.
Mia — Não. O Zeca foi meu professor por um período curto de tempo. Foi substituir a minha professora de Geografia. Toda a gente o considerava um óptimo professor. [Em surdina] Eu achava-o péssimo. Mas era divertido e ensinava outras coisas.

O vosso mundo fantástico, poético, o talento para ver a realidade nos seus aspectos mais espantosos, e a converter em palavras, de onde vem?
Mia — É difícil falarmos de nós próprios. Vem de várias coisas. Por exemplo, sou de uma geração educada a ser homem, macho.

Quais eram os códigos?
Mia — Um homem não chora. Um homem não confessa certo tipo de sentimentos. É duro. A relação com o lado sentimental era diferente desta que tomei para mim. Quando se escreve e se tem de ser mulher e ser outro, dentro de nós há uma briga. Há uma ousadia que é preciso ter. A capacidade de nos aceitarmos múltiplos, plurais, é um bom ponto de partida para escrever.
Agualusa — Não sei dizer. Talvez tenha que ver com essa infância.
Mia — Posso dizer o que é que ele tem de especial?

    De repente, as palavras organizam-se, há uma luz ali, os personagens começam a desenhar uma história. É como ler. Mas sou eu que estou a fazer. É um duplo prazer. É um mundo que vai nascendo de dentro de nós
    José Eduardo Agualusa

Pode. É capaz de ser mais fácil falarem um do outro. Verem-se de fora.
Mia — Ele é uma criatura de fronteira. Alguém que esteve entre mundos e que não quis nunca construir um lugar físico. Vive em histórias permanentemente. A moradia dele não é um lugar e um tempo. O tempo só serve para a travessia, para a viagem. E nunca está em lado nenhum. Está aqui mas está a fingir que está aqui. [Gargalhada de Agualusa.] Estando nós a viajar no meio da Ucrânia ou num musseque em Angola, ele está sempre na criação de histórias. Não tem um onde.
Agualusa — Na minha família, toda a gente contava histórias. Toda a gente queria contar as melhores histórias.
Mia, esperavam de si grandes histórias, grandes coisas?
Mia — Eu era o mais desvalido da casa. Era o pasmado, o que não sabia fazer coisas práticas. Tinha de haver um território onde dissesse — onde disséssemos — que somos visíveis.
Agualusa — [Contar histórias] é uma afirmação identitária. O que é importante no nosso caso, tu como moçambicano, eu como angolano, é que na escrita há uma afirmação identitária.
Mia — Começa por ser isso. Depois já não queremos saber disso.
Agualusa — O meu primeiro livro, A Conjura, um romance histórico sobre o século XIX, é claro para mim que surge como afirmação identitária. Depois é como o Mia diz. A gente toma o gosto naquilo. E vai.

Resolver e afirmar uma identidade, através da escrita, é também uma maneira de suturar feridas?
Agualusa — Afirmação identitária mesmo. Um modo de dizer: “Estou aqui neste país e sou angolano desta maneira.”

E a ferida? Não havia como não estarem em ferida, doridos, quando começaram a escrever. O fim da guerra, das guerras, era recente. A escrita ajudou a organizar o mundo?
Mia — A ideia de alguém ter uma ferida particular... Todos temos.
Agualusa — A escrita ajuda sempre. A escrita é um processo de reflexão. Ajuda-nos a situar-nos naquele momento, naquele universo. Depois vem a fruição, o prazer de que falava o Mia. Escreve-se pelo prazer que a escrita dá.

Descreva.
Agualusa — É muito bom. Tem aquela coisa da descoberta, certo, é um exercício de alteridade, maravilha, compreende-se melhor o outro e compreendemo-nos melhor a nós, verdade. E, além disso, e o mais importante não é nada disso, há o prazer. De repente, as palavras organizam-se, há uma luz ali, os personagens começam a desenhar uma história. É como ler. Mas sou eu que estou a fazer. É um duplo prazer. É um mundo que vai nascendo de dentro de nós.

É bonito que fale desse prazer, sobretudo porque temos a imagem do escritor angustiado.
Agualusa — Em Portugal, há a escola do escritor angustiado. Portugal tem um culto do sofrimento, da tristeza, da melancolia. Aquilo que é prazer tem de ser [também] sofrimento.
Mia — O sofrimento como elemento identitário é [marca] do catolicismo. Quando me ofereci para ser membro da Frelimo, fui a uma sessão em que era o único gajo jovem e o único gajo branco. Havia um grupo que ajuizava os candidatos e estes tinham de apresentar uma “narração do sofrimento”.

Narração do sofrimento?
Mia — Cada candidato chegava e dizia o que é que sofreu. Comecei a ficar atrapalhado. Eu não tinha sofrido nada, na verdade. Aquilo era gente mesmo sofredora. Gente que tinha sido presa, que passava fome, que tinha sido espancada, discriminada racialmente. Percebi a minha felicidade como nunca tinha percebido. Entendi mais tarde que aquilo era uma marca do cristianismo.

A confissão e partilha?
Mia — O sofrimento como prova de identidade.
Agualusa — Cristianismo na sua versão mais calvinista, que era a que vocês mais tinham.

Voltemos atrás para que Agualusa diga o que é que Mia tem de especial.
Mia — Ele não me acha nada de especial.
Agualusa — Provavelmente, o facto de o Mia ser o irmão do meio [é decisivo]. O irmão do meio tem de dar provas. Tem que ver sempre com a necessidade de afirmação. Chamar a atenção numa área. Chamar a atenção da mãe. Estamos a tentar explicar coisas que não se explicam. Nasceu com isto..., com esta deformidade. [Riso.]

A deformidade de ser um poeta que escreve prosa? Foi assim que Mia se apresentou uma vez.
Agualusa — Como é que nasce um xamã? Um xamã tem um lado que é de formação e um lado que não é de formação — é de condição. É poeta, nasceu poeta!, coitado, podia ter nascido com uma perna torta.
Mia — Imagina que tinhas jeito para fazer coisas? Tens jeito? Hoje podias ser um engenheiro de pontes. São também as portas que se fecham.
Agualusa — Se tivesse terminado Agronomia, podia não ser hoje escritor.
Mia — Tenho uma tese sobre por que é que não terminaste.

Qual é?
Mia — Agronomia implica um tipo que tem raiz. Este gajo não pode ter raiz. Só pode ter asa.

É uma leitura poética.
Mia — É a verdade. Isto explica duas coisas. Porque é que aderiste ao curso — porque precisas de ter raiz. E não concluíste porque não podes ficar numa raiz só.
Agualusa — Devia ter ido para artes levitatórias. Ou ser condutor de balões.

Quando é que se conheceram?
Agualusa — Posso estar a criar ficção, mas acho que fui a primeira pessoa a fazer uma recensão de um livro do Mia, aqui em Portugal, no Expresso. Na sequência disso, uma amiga comum organizou um jantar, onde o Mia esteve com a Patrícia [mulher].
Mia — Antes disso, cruzámo-nos e falámos sobre o teu texto. Percebemos que tínhamos muita coisa em comum. Sendo africanos, brancos, de um certo tipo de família...

Está a enunciar as coisas que vos aproximaram?
Mia — Havia um (termo horrível) destino. Parece uma confissão. Daqui a bocado, uma confissão gay. Parecia que estávamos fadados um para o outro. O Zé já era apaixonado pela escrita e pela leitura. Ele era jornalista, eu já tinha sido jornalista.
Agualusa — E havia o interesse pela Biologia.
Mia — Falámos de nomes de plantas.

De política, falaram muito?
Agualusa — Claro.
Mia — Tínhamos zangas e discórdias.
Agualusa — Não me lembro.
Mia — O Zé tinha uma coisa mais clarividente do que eu. Maior distância crítica. Eu estava muito dentro do processo político da Frente de Libertação. Seres mais novo também ajudou. Quando ele punha dúvidas, eu estava naquela postura do militante mais convicto.

Quando é que deixou de ser convicto? E militante?
Agualusa — Luto por causas. Continuo a combater provavelmente pelas mesmas causas. Pela pacificação e democratização de Angola. Nesse aspecto, não mudei nem perdi a fé.

Não? Se olho para um livro como o Barroco Tropical, que se passa no futuro angolano, e que dá uma visão tão negra, tão ácida desse futuro, penso que está desencantado.
Mia — É o livro do não futuro.
Agualusa — O Barroco é uma distopia, um retrato de um mundo que não quero para mim, para os meus filhos, para as pessoas que amo. As distopias servem para alertar para os erros do presente na intenção de corrigir esses erros. Se for olhado dessa maneira, não é um livro pessimista. Pode haver muito horror, e há, em alguns dos meus livros. Na Estação das Chuvas, por exemplo. [O que escrevo é] também uma denúncia desse horror.
Mia — O Zé está condenado a não sair mais de Angola.
Agualusa — Como assim?
Mia — Angola está tão dentro de ti que, mesmo estando ausente, Angola persegue-te. Não vais ter outro território de sonho. Comigo é a mesma coisa em relação a Moçambique. Talvez pela condição histórica de termos nascido no momento em que os países se estavam a afirmar. Não temos casa — casa da alma — se não for aquela que está ali.

Assistiram à celebração da paz, tiveram o sonho. Os países cresceram com as suas desigualdades, injustiças.
Agualusa — Mas a paz não foi feita ainda. Em Angola, o fim da guerra foi um triunfo militar. Não foi através do diálogo. Não se constrói a paz assim. A paz implica uma conversa que nunca foi feita. Implica compreender as razões do outro. As razões do outro não foram ouvidas, foram apagadas. Estão calcadas, não estão resolvidas. A guerra civil tem uma razão de ser que se percebe ao longo da História. Tem que ver com a construção da cidade, do mundo urbano, que cresceu à custa do mundo rural, através da escravatura. A sociedade mestiça de Luanda enriqueceu com o tráfico negreiro. Há um rancor histórico que persiste até hoje. É preciso ir mais longe, fazer uma reconciliação. Eu teria preferido uma paz negociada. Eu preferia sobretudo que nunca tivesse havido confronto físico, bélico, guerra! Os territórios sujeitos à guerra têm durante uma eternidade essa guerra. A violência sempre eclode de novo.

Como se fosse um eco.
Agualusa — Um eco. Aquela violência foi, está lá, ficou. Como quebrar esse ciclo de violência? É o desafio que temos. Vamos a todos os grandes filósofos, profetas, de Cristo a Buda. Todos ensinam o mesmo. Dá a outra face. Faz com que o outro se coloque no teu lugar. Coloca-te no lugar do outro. Tenta compreender o outro. Não é nada que a gente não saiba. Só que não se faz. O pior é isso: não é que não saibamos como fazer.

    Angola está tão dentro de ti que, mesmo estando ausente, Angola persegue-te. Não vais ter outro território de sonho
    Mia Couto

    Há uma alegria no Mia, na escrita do Mia... E uma melancolia. Uma tristeza elegante
    Agualusa

Não se faz por causa de diamantes, petróleo, orgulho, por tudo isto?
Agualusa — [suspiro] Acho que por estupidez. Falta de inteligência, mesmo.

Fale de como viu o processo de paz em Moçambique.
Mia — Tenho de rectificar um bocado o discurso que andava a fazer até há pouco tempo. Depois do fim da guerra civil, em 1992, os moçambicanos decidiram não falar sobre o assunto. Um ano, dois anos depois, e não tinha acontecido nada. Ninguém queria abrir aquela caixa. Pensei que era a maneira mais sábia. As pessoas percebiam que qualquer coisa não tinha sido resolvida. Essa qualquer coisa era tão essencial que era melhor não tocar nela. Afinal, acho que não se resolveu bem quando se resolveu não falar. [Não foi uma boa decisão] enterrar isso no esquecimento. A solução esquecimento não é uma solução.
Agualusa — Estás a dar-me razão. Tivemos este combate durante anos. Sempre defendi que é preciso criar rituais de reconciliação, de perdão. As pessoas têm de chorar em conjunto. Como os casais. Como os amigos desavindos.

Como as famílias.
Agualusa — Exactamente, é uma família. As pessoas têm de ser capazes de fazer o luto e de se perdoarem.
Mia — De alguma maneira, esse ritual foi feito [em Moçambique]. Mudei de atitude, mas não estou de acordo com uma solução de tipo sul-africano, muito institucionalizada, que não toca os rituais mais profundos das pessoas.

Rainha Ginga, o novo livro de Agualusa, tem no centro uma figura icónica da história angolana. Mia está a escrever sobre Gungunhana, o rei moçambicano, gigante, que viveu entre 1850 e 1906, que todos queriam capturar. Está para breve?
Mia — Não sei. Quando quero escrever um romance, aparece-me poesia. Acabei um livro de poesia. Agora encaro a prosa como um filho que resta. Vou demorar ainda uns seis meses a acabar o que já tenho feito.

Na contracapa da Rainha Ginga, diz que “Angola tem muito passado pela frente, no sentido de que há tanto passado angolano por descobrir e ficcionar”. Anos depois da ratificação da paz, mesmo que ela não seja tão efectiva quanto gostaria, há tempo para ir lá atrás e falar de uma figura assim, do século XVI?
Agualusa — Escrevi este livro ao mesmo tempo que o Mia escrevia sobre Gungunhana e em Angola se produzia um filme sobre a Rainha Ginga. Talvez haja em África uma demanda comum. É uma tentativa de redescobrir o passado numa perspectiva africana. O que temos, normalmente, é uma perspectiva europeia ou uma perspectiva um pouco extremada, nacionalista, que também é mentirosa. Este livro responde a uma inquietação comum ao continente (e não apenas à África de língua portuguesa).

Porque é que Ginga o fascina?
Agualusa — Por ser uma mulher que foi capaz de subverter todas as regras, a sua própria tradição, e de construir um mundo que era o seu mundo. De inventar um mundo à sua imagem.

É um pouco o que fazem com a escrita: inventar um mundo.
Agualusa — Pois, mas ela põe no terreno, nós pomos no papel. Menos corajoso.

Gungunhana interessou-o porquê?
Mia — Por aquilo que não foi. Há dois discursos que o esmagam. Houve uma ficção daquele personagem por parte dos portugueses, que o queriam maior do que era. Era preciso ter um inimigo grande para engrandecer o feito de o ter vencido. A Frelimo, o Governo moçambicano, precisou de construir nele um herói nacional. Houve uma mistificação daquele personagem. O que procuro é a pessoa que sobrou no meio destas duas ficções.
Agualusa — Gosto dessa ideia [a pessoa que sobrou].
Mia — Ainda sobre a coincidência de escrevermos romances históricos: esta sede pelo passado vem da falta de futuro. O Barroco Tropical do Zé era uma maneira de dizer que queremos outro futuro. A necessidade de desenhar um futuro faz com que a gente tenha de recomeçar lá atrás, a recriar um tempo que não foi aquele que nos disseram que existia. Houve uma tentativa de impor só um passado.

    A necessidade de desenhar um futuro faz com que a gente tenha de recomeçar lá atrás, a recriar um tempo que não foi aquele que nos disseram que existia
    Mia

Uma visão única da história?
Mia — Como se o passado fosse uma coisa simples, singular, única. E houve vários passados.
Agualusa — Parece que o passado nunca passa. Uma das coisas mais interessantes ao estudar esta época da Rainha Ginga foi perceber que aquilo é tão presente... A forma como aqueles conflitos se desenrolam, as alianças feitas..., e tudo com pessoas. Por vezes, perdemos a noção de que eram pessoas.

Porque os vemos apenas como mitos.
Agualusa — Sim. Eram pessoas inseridas em processos históricos complicadíssimos. Quando comparamos a época da independência, que é uma época de redesenhar as fronteiras, com a da Rainha Ginga, que era também de redesenhar fronteiras, e de fazer um país, ou países, porque é Angola que está em construção, é o Brasil que está em construção, é Portugal que de certa forma está em construção, as situações são semelhantes. E essas pessoas são pessoas. Procuravam o mesmo que procuramos hoje.

O quê? Felicidade, amor, glória?
Agualusa — Isso tudo que realmente conta, essas coisas básicas, simples. Falámos tanto do medo: procuravam perder o medo.

O que é busca na sua viagem incessante?
Agualusa — Compreender. Compreender o outro para perceber o que faço aqui. É tão cliché, mas é assim mesmo. À medida que vamos crescendo, percebemos que o outro somos nós. Que não há um outro. Cada vez sou mais fascinado (voltando à Biologia) pelas formigas. Há a tese de que o formigueiro é que é o animal. As formigas são células do animal; não são sequer células autónomas porque não sobrevivem longe, sozinhas. Talvez não estejamos longe disto. Talvez sejamos um único animal.
Mia — O teu próximo curso é Biologia, vais ver.
Agualusa — A humanidade é uma única entidade. Sempre fomos o mesmo ao longo do tempo. É o mesmo animal, o mesmo ser. Daí o absurdo dos conflitos. Estamos a combater-nos a nós próprios. Uma guerra civil é uma guerra na qual nos combatemos a nós próprios, o nosso organismo.

Como um cancro. Que nasce de nós e nos mata.
Agualusa — É.
Mia — Porque é que deixamos de ver os outros como uma parte de nós? Porque aprendemos a olhar de mais para nós. Há uma anulação de nós próprios que temos de aprender. No fundo, o escritor é um escutador. Aprendeu a ouvir os outros. E percebendo no fim que quem está ali é ele próprio. Mas tem de começar por fora.

Agora que estamos a terminar, estava a perguntar-me se seria diferente esta entrevista se eu fosse um homem. Será que falaríamos mais dos conflitos africanos?
Agualusa — Pode ser. E pode ser que não soubéssemos responder!
Mia — Se calhar também estamos a procurar ser engraçados por ser uma mulher. [Gargalhada dos dois.]

Isto é também uma maneira de perguntar se querem falar mais de política, de guerra. Têm um discurso muito crítico politicamente.
Agualusa — Eu recebo notícias de Luanda todos os dias. Sou atingido pelo facto de o regime existir e se comportar de uma determinada maneira. E reajo a isso, como é óbvio.

Mas não é o centro da sua vida como no passado a política foi um centro.
Agualusa — Na minha vida, nunca foi.
Mia — Na minha, foi.
Agualusa — O centro são as pessoas.
Mia — A política é uma maneira de chegar às pessoas.
Agualusa — Tu foste militante partidário, eu nunca fui. Completamente diferente. Sou militante de ideias. Não sou militante de movimentos políticos. Como cidadão, intervenho todos os dias. Com certeza. Mas a minha vida é muito mais.

Sente alguma limitação quando intervém? Perseguem-no?
Agualusa — Eu tinha uma crónica no jornal A Capital e deixei de ter. Alguém comprou o jornal e não pude continuar a escrever. Claro que há limitações. O Rafael Marques escrevia no mesmo jornal e pela mesma razão [foi dispensado]. Fomos apagados. Agora escrevo num jornal online, na Rede Angola.
Mia — Aos 17 anos, procurava uma extensão da família num partido político. Abandonei os estudos de Medicina, tudo, para me dedicar àquela causa. Foi muito complicado pensar que [a política] era outra coisa. A ruptura, em 1986, magoou-me muito. Ao mesmo tempo foi uma grande libertação. Quiseram pagar-me os estudos, quando [saí da política activa]. Felizmente não aceitei. Não queria ter dívidas.

São o melhor amigo um do outro? Como irmãos?
Mia — Alguém é um grande amigo se temos um momento intenso, uma coisa bonita que estamos a ver, e pensamos: “Gostaria que ele estivesse aqui.” Penso nele. Rimo-nos muito das mesmas coisas, imbecilidades. Partilhamos coisas que os escritores normalmente não partilham. Ideias para livros. Sem receio. Agora diz lá porque é que tu és meu amigo!
Agualusa — Concordo inteiramente com o que disseste. Há uma alegria no Mia, na escrita do Mia... E uma melancolia. Uma tristeza elegante.
Mia — Ele faz uma coisa de que tenho inveja: uma poesia que faz de conta que não é. Há um trabalho poético que ele não põe à varanda. Quanto é que me pagas por ter dito isto?

segunda-feira, junho 02, 2014

Carta a um irmão político


Ainda me lembro da noite em que ouvi pela primeira vez a palavra sectário. Devia ter aí uns catorze ou quinze anos e não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer. Mas pelo ar com que empregavas a expressão, não devia ser coisa boa. Aliás, inserida na frase "os seus amigos sectários...", não podia mesmo ser coisa boa. E pela cara com que o nosso pai a recebia, a coisa não era mesmo boa. Como militante do PCP que o pai era há décadas, ele já devia ter ouvido esse ataque umas mil vezes. Como militante socialista que tu eras há uns sete ou oito anos, já a terias proferido algumas vezes.
Não sei se era coisa da faculdade de Direito onde andavas, com a JS e a JCP a disputar a Associação de Estudantes como se fosse a coisa mais importante do mundo, se eram assuntos mais vastos da esquerda, daqueles que ainda hoje ocupam a cabeça de tanta gente, sem progresso ou resultado aparente. Sei apenas que olhava para vocês com admiração pelo empenho com que discutiam, mas sempre com a impressão de que gostava muito mais de assistir do que participar. Às vezes, o meu tio João juntava-se às discussões, e como militante da primeira hora do PSD, fazia com que tudo aquilo se tornasse num diálogo ainda mais interessante e ainda mais impossível. Cresci a ver e a ouvir isso e não tenho dúvidas de que vocês os três, cada um com a sua dose, são responsáveis parciais pelo que acabou por ser o meu trabalho. Foi um treino forçado, mas intensivo.
Passaram trinta anos. Tu nunca largaste a política nem o PS. O meu tio João morreu no ano passado com as quotas e o fervor pelo PSD em dia. E o pai, claro, morreu sem nunca deixar o PCP, apesar de todas as dúvidas a que fomos assistindo, de ter votado como votou no Congresso do Porto - acho que ao lado do Miguel Portas - e de tudo o que se passou nos anos seguintes, com alguns dos melhores amigos dele a saírem do partido. À maneira dele, lidou bem com isso. Manteve os amigos e nunca confundiu as coisas. Lembro-me do desgosto que ele teve quando o Lima de Freitas apoiou o Freitas do Amaral em 1986. Mas lembro-me ainda melhor de como, ano após ano, eles os dois mais o David Mourão Ferreira, conversavam noite fora na Praia do Carvoeiro, esquecendo as divergências políticas e lembrando tudo o que os unia e divertia.
Podia seguir página abaixo, com exemplos destes. Mas lembro apenas mais um, quando o pai ficava tardes à conversa com a Helena Sacadura Cabral, que encontrava quando ia almoçar a um pequeno restaurante nas Janelas Verdes. E só lembro isso porque, além das óbvias divergências políticas deles e da ainda mais óbvia amizade, a Helena tinha em casa um problema bicudo, aquele que todos os portugueses conhecem, o do Paulo e do Miguel Portas. E só lembro isto, porque na terça-feira à noite, pouco tempo depois de termos falado pela primeira vez ao telefone - já tu eras candidato e já eu tinha posto o meu lugar no Expresso à disposição da administração e da redação -, a Constança Cunha e Sá ligou-me a a dizer "ouve lá, vocês só têm que fazer como o Paulo e o Miguel".
A Constança não podia ter sido nem mais genuína nem mais simpática. Mas não sei se a coisa é assim tão simples, muito menos se é mais mais fácil ou difícil. Eles foram jornalistas mas foram sempre políticos. Tu nunca foste jornalista e eu nunca fui político. Andámos e andamos em barricadas diferentes. E é assim que tem que ser. Temos a vantagem de saber que nunca teremos de fazer um frente a frente, mas temos a desvantagem de saber que o Expresso te vai cair em cima de quando em vez e que tu vais tentar cair em cima do Expresso. Não sei se vai haver Congresso e não faço a mínima ideia se o vais ganhar. Mas sei que agora é diferente.
O Expresso já teve um desafio maior pela frente, quando Francisco Balsemão foi para o governo e depois para primeiro-ministro. O jornal passou com distinção na prova. Foi impiedoso, às vezes demais, e fê-lo com estilo e com estrondo. Não gosto de falar em nome da redação onde trabalho, mas conhecendo os meus colegas, sei que não lhes passa pela cabeça fazer alguma coisa diferente. Presumo que estejas preparado para isso. Eu estou. Ou melhor, vou estando.
Outro dia, na homenagem que fizeram ao pai na Casa de Goa, o Vasco Vieira de Almeida lembrou, como só ele é capaz de o fazer, como o pai combinava a ortodoxia marxista com uma permanente discussão de tudo e com todos. Sei que ele ia ficar aflito ao ver-nos chocar. Mas não ia esperar outra coisa de nós. Se alguma coisa correr mal, podemos pedir ao Vasco para arbitrar. Boa sorte.

segunda-feira, abril 28, 2014

Celebram-se este mês

Celebram-se este mês os 40 anos da morte do 25 de Abril. Ou talvez não seja bem isto. Mas parece. Não se sabe ao certo como vão ser comemoradas as quatro décadas de democracia. Suspeita-se apenas que a cerimónia vai ser pobre, triste, e presidida por gente que não mexeu uma palha para que a Revolução acontecesse. Os capitães de Abril não estarão presentes. Durante o Estado Novo, as pessoas que fizeram o 25 de Abril não podiam falar na Assembleia da República. Ao fim de 40 anos de democracia, continuam a não poder. Podem estar presentes, desde que seja só para enfeitar. Mas não querem. É pena. Sugiro um friso de capitães de Abril feito de fotografias em tamanho real, recortadas em cartão. Faz o mesmo efeito que os organizadores da cerimónia pretendiam, e podem usar-se fotografias dos tempos em que os capitães de Abril estavam mais novos e mais magros. É uma maneira de termos um 25 de Abril ainda mais próximo do original. E de plástico, que é mais barato.
Outra ideia, um pouco mais subversiva, mas igualmente respeitadora da ordem e do silêncio: todos os democratas presentes na Assembleia para a cerimónia comemorativa do 25 de Abril levam no bolso uma máscara do Vasco Lourenço. E, quando a corja topa da tribuna do hemiciclo, põem a máscara. Talvez pregue um susto suficiente para que alguns dos organizadores da festa corram a comprar um bilhete para o Brasil. As agências de viagens bem precisam de um incentivo destes.
Entretanto, e creio que já no âmbito das festividades, Durão Barroso afirmou que, antes do 25 de Abril, "apesar de algumas liberdades cortadas, havia na escola uma cultura de mérito, exigência, rigor, disciplina e trabalho" que se perdeu. Realmente, havia algumas liberdades cortadas. E algumas goelas, também. Mas, para o presidente da União Europeia, o regime em que havia uma polícia política que prendia, torturava e matava tinha um ensino muito bom. Parece que, na antiga RDA, o desporto também era óptimo. Dizem que Jack, o Estripador, tinha uma linda colecção de selos. E, como se sabe, os nazis tinham marchas lindas.
De facto, e com muita pena minha, o ensino do Estado Novo era melhor e mais exigente. Cito, por exemplo, o Livro de Leitura da 3.ª Classe, de 1958: "Com o Estado Novo abriu-se para Portugal uma época de prosperidade e de grandeza, comparável às mais brilhantes de toda a sua história. (...) Construíram-se muitas escolas, e hão-de construir-se as que forem precisas para que todas as crianças em idade escolar tenham onde educar-se e instruir-se." A prova de que o ensino era bom é que Durão Barroso memorizou estas palavras do livro único e não mais as esqueceu. É pena que, aparentemente, os primeiros-ministros que governaram Portugal após o 25 de Abril não tenham conseguido manter este nível de excelência nas nossas escolas. Não sei se Durão Barroso conhece algum. Mas todos eles merecem uma palmatoada. E deviam decorar os nomes dos rios e caminhos-de-ferro de Angola, para castigo.

terça-feira, abril 15, 2014

Felipe Gonzalez em Lisboa



O antigo presidente do Governo espanhol Felipe González defendeu esta terça-feiras que as campanhas eleitorais para o Parlamento Europeu, tanto em Espanha como em Portugal, devem debater as questões europeias, ao invés de se centrarem nos assuntos de política interna.
González, que liderou o país vizinho durante 13 anos e meio (a partir do início da década de 80 do século passado), interveio na conferência do Expresso/SIC/Instituto de Ciências Sociais que assinala os 40 anos do 25 de Abril, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa.
O ex-líder do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) começou por falar do impacto que o 25 de Abril teve na sua geração e no seu país, que em 1974 ainda vivia sob a ditadura franquista. "O que se passava em Portugal era o culminar de uma aspiração", disse. "Em Espanha queríamos que ocorresse um 25 de Abril", acrescentou.
"Víamos com grande ilusão a rutura que se viveu em Portugal", acrescentou, para de seguida mencionar duas diferenças entre o processo português e o espanhol. Por um lado, do lado de lá da fronteira "há um vazio da representação simbólica", na falta de uma data que possa ser equiparada ao 25 de Abril. Por outro, a realidade portuguesa, com as colónias africanas, levou a que a Guerra Fria se tenha jogado nesses espaços, com a intervenção da União Soviética,  que marcou o processo de descolonização.
Mas se a evocação do 25 de Abril foi o ponto de partida da intervenção de González, o antigo político espanhol faria de seguida uma intervenção muito estruturada (e a mais aplaudida até esse momento nas diversas sessões plenárias da conferência) sobre a atual situação na Europa, sobretudo nos países ibéricos.
E neste ponto ponto, González disse claramente de onde vem: "Sou um europeu europeísta. A solução [para a crise atual] passa por mais Europa, com outro tipo de subsidariedade".
A receita seguida até ao momento tem sido a errada. "O que não cresce não paga dívidas", afirmou o ex-político espanhol, antes de referir o fraco desempenho das economias espanhola e portuguesa, nas quais o crescimento dos respetivos PIB é muito baixo (quando não é negativo), ficando muito aquém nas necessidades para o pagamento dos juros da dívida de cada um dos países.
A raiz do problema é mais vasta, segundo González. "O modelo da economia da globalização está excessivamente financeirizado. E quando gera riqueza, distribui-a mal, tanto na China como na Dinamarca. E se o modelo distribui mal quando cresce, distribui muito pior numa fase de ajustamento", disse.
Como corolário desta realidade, para González vive-se a "pior crise de governance da democracia representativa".

"Portugal e Espanha vão continuar mal"
A solução para este défice é mais Europa. "Não me importaria nada que houvesse um ministro da Economia e das Finanças na Europa. Mas com legitimidade democrática. E a maior legitimidade democrática está no Parlamento Europeu. E isso não se está a discutir nos nossos dois países, o que me preocupa", disse o antigo presidente do Governo espanhol, depois de ter salientado que dos dois lados da fronteiras são as agendas domésticas a marcar o debate pré-eleitoral.
Desarmando os que lhe apontam o dedo por contestar os caminhos da construção europeia, e isso dar espaço aos adversário da Europa, o ex-chefe do Governo espanhol responde: "Se não há um europeísmo crítico com os erros que se vão cometendo, então aí é que os anti-europeus vão crescer". 
Neste estado de coisas, "a solução passa por animar estas eleições europeias". "Chegará o momento de discutir quem governa melhor a margem de governo que temos [em cada país]. Hoje é preciso escolher o que se quer que se faça com a Europa", disse.
González antecipou-se de certa forma ao debate que viria a encerrar  a conferência, em que os ex-presidentes da República Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio responderam à pergunta "valeu a pena?". "Valeu a pena, para Portugal e para Espanha. Não há nada mais importante do que recuperar a liberdade. Digo-o nesta hora de sofrimento. Claro que valeu a pena", afirmou o antigo presidente do governo espanhol.
O ensaísta Eduardo Lourenço foi o comentador da intervenção de González, subordinada à ideia "Visto de Espanha". Partilhando a opinião do político espanhol - "interessa encontrar uma saída, que só pode ser a casa comum europeia, evocada por Gorbatchov", disse Lourenço -, o pensador português introduziu no entanto alguns pingos de pessimismo na reflexão.
Se antes González dissera que Portugal e Espanha "vão continuar mal neste ano e no próximo, e provavelmente no seguinte", Lourenço disse que não haverá opções autónomas para qualquer dos países. "Não temos mais nenhuma saída do que as saídas que a Europa encontrar para ela própria", afirmou o pensador português.
E aqui Lourenço lançou os avisos à navegação: "Mas a Europa não é a barca das barcas. A Europa, com largas exceções, é uma guerra civil sem fim. Para mim, a história não é um conto de fadas, é uma espécie de tragédia contínua. Espero que esta Europa que queremos construir seja um oásis de paz que nunca foi".

quarta-feira, abril 09, 2014

Umberto Eco sobre a internet

Em 2011, aos 80 anos, Umberto Eco concedeu uma entrevista à revista Época onde comentou sobre os prós e contras da internet como ferramenta formadora de indivíduos leitores críticos e/ou analfabetos funcionais. E sobre a acessibilidade do conhecimento possibilitada pela mesma.
 ÉPOCA - Como o senhor se sente, completando 80 anos? Umberto Eco - Bem mais velho! (Risos.) Vamos nos tornando importantes com a idade, mas não me sinto importante nem velho. Não posso reclamar de rotina. Minha vida é agitada. Ainda mantenho uma cátedra no Departamento de Semiótica e Comunicação da Universidade de Bolonha e continuo orientando doutorandos e pós-doutorandos. Dou muita palestra pelo mundo afora. E tenho feito turnês de lançamento de O cemitério de Praga. Acabo de voltar de uma megaexcursão pelos Estados Unidos. Ela quase me custou o braço. Estou com tendinite de tanto dar autógrafos em livros.
 ÉPOCA - O senhor tem sido um dos mais ferrenhos defensores do livro em papel. Sua tese é de que o livro não vai acabar. Mesmo assim, estamos assistindo à popularização dos leitores digitais e tablets. O livro em papel ainda tem sentido? Eco - Sou colecionador de livros. Defendi a sobrevivência do livro ao lado de Jean-Claude Carrière no volume Não contem com o fim do livro. Fizemos isso por motivos estéticos e gnoseológicos (relativo ao conhecimento). O livro ainda é o meio ideal para aprender. Não precisa de eletricidade, e você pode riscar à vontade. Achávamos impossível ler textos no monitor do computador. Mas isso faz dois anos. Em minha viagem pelos Estados Unidos, precisava carregar 20 livros comigo, e meu braço não me ajudava. Por isso, resolvi comprar um iPad. Foi útil na questão do transporte dos volumes. Comecei a ler no aparelho e não achei tão mau. Aliás, achei ótimo. E passei a ler no iPad, você acredita? Pois é. Mesmo assim, acho que os tablets e e-books servem como auxiliares de leitura. São mais para entretenimento que para estudo. Gosto de riscar, anotar e interferir nas páginas de um livro. Isso ainda não é possível fazer num tablet.
 ÉPOCA - Apesar dessas melhorias, o senhor ainda vê a internet como um perigo para o saber? Eco - A internet não seleciona a informação. Há de tudo por lá. A Wikipédia presta um desserviço ao internauta. Outro dia publicaram fofocas a meu respeito, e tive de intervir e corrigir os erros e absurdos. A internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. Tudo surge lá sem hierarquia. A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar. Vamos tomar como exemplo o ditador e líder romano Júlio César e como os historiadores antigos trataram dele. Todos dizem que foi importante porque alterou a história. Os cronistas romanos só citam sua mulher, Calpúrnia, porque esteve ao lado de César. Nada se sabe sobre a viuvez de Calpúrnia. Se costurou, dedicou-se à educação ou seja lá o que for. Hoje, na internet, Júlio César e Calpúrnia têm a mesma importância. Ora, isso não é conhecimento.
ÉPOCA - Mas o conhecimento está se tornando cada vez mais acessível via computadores e internet. O senhor não acha que o acesso a bancos de dados de universidades e instituições confiáveis estão alterando nossa noção de cultura? Eco - Sim, é verdade. Se você sabe quais os sites e bancos de dados são confiáveis, você tem acesso ao conhecimento. Mas veja bem: você e eu somos ricos de conhecimento. Podemos aproveitar melhor a internet do que aquele pobre senhor que está comprando salame na feira aí em frente. Nesse sentido, a televisão era útil para o ignorante, porque selecionava a informação de que ele poderia precisar, ainda que informação idiota. A internet é perigosa para o ignorante porque não filtra nada para ele. Ela só é boa para quem já conhece – e sabe onde está o conhecimento. A longo prazo, o resultado pedagógico será dramático. Veremos multidões de ignorantes usando a internet para as mais variadas bobagens: jogos, bate-papos e busca de notícias irrelevantes.
 ÉPOCA - Há uma solução para o problema do excesso de informação? Eco - Seria preciso criar uma teoria da filtragem. Uma disciplina prática, baseada na experimentação cotidiana com a internet. Fica aí uma sugestão para as universidades: elaborar uma teoria e uma ferramenta de filtragem que funcionem para o bem do conhecimento. Conhecer é filtrar.
ÉPOCA - O senhor já está pensando em um novo romance depois de O cemitério de Praga? Eco - Vamos com calma. Mal publiquei um e você já quer outro. Estou sem tempo para ficção no momento. Na verdade, vou me ocupar agora de minha autobiografia intelectual. Fui convidado por uma instituição americana, Library of Living Philosophers, para elaborar meu percurso filosófico. Fiquei contente com o convite, porque passo a fazer parte de um projeto que inclui John Dewey, Jean-Paul Sartre e Richard Rorty - embora eu não seja filósofo. Desde 1939, o instituto convida um pensador vivo para narrar seu percurso intelectual em um livro. O volume traz então ensaios de vários especialistas sobre os diversos aspectos da obra do convidado. No final, o convidado responde às dúvidas e críticas levantadas. O desafio é sistematizar de uma forma lógica tudo o que já fiz...
ÉPOCA - Como lidar com tamanha variedade de caminhos? Eco - Estou começando com meu interesse constante desde o começo da carreira pela Idade Média e pelos romances de Alessandro Manzoni. Depois vieram a Semiótica, a teoria da comunicação, a filosofia da linguagem. E há o lado banido, o da teoria ocultista, que sempre me fascinou. Tanto que tenho uma biblioteca só do assunto. Adoro a questão do falso. E foi recolhendo montes de teorias esquisitas que cheguei à ideia de escrever O cemitériode Praga.
ÉPOCA - Entre essas teorias, destaca-se a mais célebre das falsificações, O protocolo dos sábios de Sião. Por que o senhor se debruçou sobre um documento tão revoltante para fazer ficção? Eco - Eu queria investigar como os europeus civilizados se esforçaram em construir inimigos invisíveis no século XIX. E o inimigo sempre figura como uma espécie de monstro: tem de ser repugnante, feio e malcheiroso. De alguma forma, o que causa repulsa no inimigo é algo que faz parte de nós. Foi essa ambivalência que persegui em O cemitério de Praga. Nada mais exemplar que a elaboração das teorias antissemitas, que viriam a desembocar no nazismo do século XX. Em pesquisas, em arquivos e na internet, constatei que o antissemitismo tem origem religiosa, deriva para o discurso de esquerda e, finalmente, dá uma guinada à direita para se tornar a prioridade da ideologia nacional-socialista. Começou na Idade Média a partir de uma visão cristã e religiosa. Os judeus eram estigmatizados como os assassinos de Jesus. Essa visão chegou ao ápice com Lutero. Ele pregava que os judeus fossem banidos. Os jesuítas também tiveram seu papel. No século XIX, os judeus, aparentemente integrados à Europa, começaram a ser satanizados por sua riqueza. A família de banqueiros Rotschild, estabelecida em Paris, virou um alvo do rancor social e dos pregadores socialistas. Descobri os textos de Léo Taxil, discípulo do socialista utópico Fourier. Ele inaugurou uma série de teorias sobre a conspiração judaica e capitalista internacional que resultaria em Os protocolos dos sábios do Sião, texto forjado em 1897 pela polícia secreta do czar Nicolau II.
 ÉPOCA - O senhor considera os Procotolos uma das fontes do nazismo? Eco - Sem dúvida. Adolf Hitler, em sua autobiografia, Minha luta, dava como legítimo o texto dos Protocolos. Hitler tomou como verdadeira uma falsificação das mais grosseiras, e essa mentira constitui um dos fundamentos do nazismo. A raiz do antissemitismo vem de muito antes, de uma construção do inimigo, que partiu de delírios e paranoias.
ÉPOCA - O personagem de O cemitério de Praga, Simone Simonini, parece concentrar todos os preconceitos e delírios europeus do século XIX. Ele é ao mesmo tempo antissemita, anticlerical, anticapitalicas e antissocialista. Como surgiu na sua mente alguém tão abominável? Eco - Os críticos disseram que Simonini é o personagem mais horroroso da literatura de todos os tempos, e devo concordar com eles. Ele também é muito divertido. Seus excessos estão ali para provocar riso e revolta. No romance, Simonini é a única figura fictícia. Guarda todos os preconceitos e fantasias sobre um inimigo que jamais conhece. E se desdobra em várias personalidades: durante o dia, atua como tabelião falsificador de documentos; à noite, traveste-se em falso padre jesuíta e sai atrás de aventuras sinistras. Acaba virando joguete dos monarquistas, que se opõem à unificação da Itália, e, por fim, dos russos. Imaginei Simonini como um dos autores de Os protocolos dos sábios do Sião.
 ÉPOCA - A falsificação sobre falsificações permitida pela ficção tornou o livro controverso. Ele tem provocado reações negativas. O senhor gosta de lidar com polêmicas? Eco - A recepção tem sido positiva. O livro tem feito sucesso sem precisar de polêmicas. Quando foi lançado na Itália, ele gerou alguma discussão. O L'osservatore Romano, órgão oficial do Vaticano, publicou um artigo condenando os ataques do livro aos jesuítas. Não respondi, porque sou conhecido como um intelectual anticlerical - e já havia discutido com a igreja católica no tempo de O nome da rosa, quando me acusaram de atacar a igreja. O rabino de Roma leu O cemitério de Praga e advertiu em um pronunciamento que as teorias contidas no livro poderiam se tornar novamente populares a partir da obra. Respondi a ele que não havia esse perigo. Ao contrário, se Simonini serve para alguma coisa, é para provocar nossa indignação.
ÉPOCA - Além de falsário, Simonini se revela um gourmet. Ao longo do livro, o senhor joga listas e listas de receitas as mais extravagantes, que Simonini comenta com volúpia. O senhor gosta de gastronomia? Eco - Eu sou MacDonald's! Nunca me incomodei com detalhes de comida. Pesquisei receitas antigas com um objetivo preciso: causar repugnância no leitor. A gastronomia é um dado negativo na composição do personagem. Quando Simonini discorre sobre pratos esquisitos, o leitor deve sentir o estômago revirado.
 ÉPOCA - Qual o sentido de escrever romances hoje em dia? O que o atrai no gênero? Eco - Faz todo o sentido escrever ficção. Não vejo como fazer hoje narrativa experimental, como James Joyce fez com Finnegan's Wake, para mim a fronteira final da experimentação. Houve um recuo para a narrativa linear e clássica. Comecei a escrever ficção nesse contexto de restauração da narratividade, chamado de pós-modernismo. Sou considerado um autor pós-moderno, e concordo com isso. Vasculho as formas e artifícios do romance tradicional. Só que procuro introduzir temas que possam intrigar o leitor: a teoria da comédia perdida de Aristóteles em O nome da rosa; as conspirações maçônicas em O pêndulo de Foucault; a imaginação medieval em Baudolino; a memória e os quadrinhos em A misteriosa chama; a construção do antissemitismo em O cemitério de Praga. O romance é a realização maior da narratividade. E a narratividade conserva o mito arcaico, base de nossa cultura. Contar uma história que emocione e transforme quem a absorve é algo que se passa com a mãe e seu filho, o romancista e seu leitor, o cineasta e seu espectador. A força da narrativa é mais efetiva do que qualquer tecnologia. ÉPOCA - Philip Roth disse que a literatura morreu. Qual a sua opinião sobre os apocalípticos que preveem a morte da literatura? Eco - Philip Roth é um grande escritor. A contar com ele, a literatura não vai morrer tão cedo. Ele publica um romance por ano, e sempre de boa qualidade. Não me parece que nem o romance nem ele pretendem interromper a carreira (risos).
ÉPOCA - Mas por que hoje não aparecem romancistas do porte de Liev Tolstói e Gustave Flaubert? Eco - Talvez porque ainda não os descobrimos. Nada acontece imediatamente na literatura. É preciso esperar um pouco. Devem certamente existir Tolstóis e Flauberts por aí. E têm surgido ótimos ficcionistas em toda parte.
 ÉPOCA - Como o senhor analisa a literatura contemporânea? Eco - Há bons autores medianos na Itália. Nada de genial, mas têm saído livros interessantes de autores bastante promissores. Hoje existe o thriller italiano, com os romances de suspense de Andrea Camilleri e seus discípulos. No entanto, um signo do abalo econômico italiano é que não é mais possível um romancista viver de sua obra literária, como fazia (Alberto) Moravia. Hoje romance virou uma atividade diletante. É diferente do que ocorre nos Estados Unidos, aindaum polo emissor de ótima ficção e da profissionalização dos escritores. Além dos livros de Roth, adorei ler Liberdade, de Jonathan Franzen, um romance de corte clássico e repleto de referências culturais. A França, infelizmente, experimenta uma certa decadência literária, e nada de bom apareceu nos últimos tempos. O mesmo parece se passar com a América Latina. Já vão longe os tempos do realismo fantástico de García Márquez e Jorge Luis Borges. Nada tem vindo de lá que me pareça digno de nota.
ÉPOCA - E a literatura brasileira? Que impressões o senhor tem do Brasil? O país lhe parece mais interessante hoje do que há 30 anos? Eco - O Brasil é um país incrivelmente dinâmico. Visitei o Brasil há muito tempo, agora acompanho de longe as notícias sobre o país. A primeira vez foi em 1966. Foi quando visitei terreiros de umbanda e candomblé - e mais tarde usei essa experiência em um capítulo de O pêndulo de Foucault para descrever um ritual de candomblé. Quando voltei em 1978, tudo já havia mudado, as cidades já não pareciam as mesmas. Imagino que hoje em dia o Brasil esteja completamente transformado. Não tenho acompanhado nada do que se faz por lá em literatura. Eu era amigo do poeta Haroldo de Campos, um grande erudito e tradutor. Gostaria de voltar, tenho muitos convites, mas agora ando muito ocupado... comigo mesmo.
ÉPOCA - O senhor foi o criador do suspense erudito. O modelo é ainda válido? Eco - Em O nome da Rosa, consegui juntar erudição e romance de suspense. Inventei o investigador-frade William de Baskerville, baseado em Sherlock Holmes de Conan Dolyle, um bibliotecário cego inspirado em Jorge Luis Borges, e fui muito criticado porque Jorge de Burgos, o personagem, revela-se um vilão. De qualquer forma, o livro foi um sucesso e ajudou a criar um tipo de literatura que vejo com bons olhos Sim, há muita coisa boa sendo feita. Gosto de (Arturo) Pérez-Reverte, com seus livros de fantasia que lembram os romances de aventura de Alexandre Dumas e Emilio Salgari que eu lia quando menino.
ÉPOCA - Lendo seus seguidores, como Dan Brown, o senhor às vezes não se arrepende de ter criado o suspense erudito? Eco - Às vezes, sim! (risos) O Dan Brown me irrita porque ele parece um personagem inventado por mim. Em vez de ele compreender que as teorias conspiratórias são falsas, Brown as assume como verdadeiras, ficando ao lado do personagem, sem questionar nada. É o que ele faz em O Código DaVinci. É o mesmo contexto de O pêndulo de Foucault. Mas ele parece ter adotado a história para simplificá-la. Isso provoca ondas de mistificação. Há leitores que acreditam em tudo o que Dan Brown escreve - e não posso condená-los.
ÉPOCA - O que vem antes na sua obra, a teoria ou a ficção? Eco - Não há um caminho único. Eu tanto posso escrever um romance a partir de uma pesquisa ou um ensaio que eu tenha feito. Foi o caso de O pêndulo de Foucault, que nasceu de uma teoria. Baudolino resultou de ideias que elaborei em torno da falsificação. Ou vice-versa. Depois de escrever Ocemitério de Praga, me veio a ideia de elaborar uma teoria, que resultou no livro Costruire il Nemico (Construir o Inimigo, lançado em maio de 2011). E nada impede que uma teoria nascida de uma obra de ficção redunde em outra ficção.
 ÉPOCA - Quando escreve, o senhor tem um método ou uma superstição? Eco - Não tenho nenhum método. Não sou com Alberto Moravia, que acordava às 8h, trabalhava até o meio-dia, almoçava, e depois voltava para a escrivaninha. Escrevo ficção sempre que me dá prazer, sem observar horários e metodologias. Adoro escrever por escrever, em qualquer meio, do lápis ao computador. Quando elaboro textos acadêmicos ou ensaio, preciso me concentrar, mas não o faço por método.
ÉPOCA - Como o senhor analisa a crise econômica italiana? Existe uma crise moral que acompanha o processo de decadência cultural? A Itália vai acabar? Eco - Não sou economista para responder à pergunta. Não sei por que vocês jornalistas estão sempre fazendo perguntas (risos). Talvez porque eu tenha sido um crítico do governo Silvio Berlusconi nesses anos todos, nos meus artigos de jornal, não é mesmo? Bom, a Itália vive uma crise econômica sem precedentes. Nos anos Berlusconi, desde 2001, os italianos viveram uma fantasia, que conduziu à decadência moral. Os pais sonhavam com que as filhas frequentassem as orgias de Berlusconi para assim se tornarem estrela da televisão. Isso tinha de parar, acho que agora todos se deram conta dos excessos. A Itália continua a existir, apesar de Berlusconi.
ÉPOCA - O senhor está confiante com a junção Merkozy (Nicolas Sarkozy e Angela Merkel) e a ascensão dos tecnocratas, como Mario Monti como primeiro ministro da Itália? Eco - Se não há outra forma de governar a zona do Euro, o que fazer? Merkel tem o encargo, mas também sofre pressões em seu país, para que deixe de apoiar países em dificuldades. A ascensão de Monti marca a chegada dos tecnocratas ao poder. E de fato é hora de tomar medidas duras e impopulares que só tecnocratas como Monti, que não se preocupa com eleição, podem tomar, como o corte nas aposentadorias e outros privilégios. ÉPOCA - O que o senhor faz no tempo livre? Eco - Coleciono livros e ouço música pela internet. Tenho encontrado ótimas rádios virtuais. Estou encantado com uma emissora que só transmite música coral. Eu toco flauta doce (mostra cinco flautas de variados tamanhos), mas não tenho tido tempo para praticar. Gosto de brincar com meus netos, uma menina e um menino.
ÉPOCA - Os 80 anos também são uma ocasião para pensar na cidade natal. Como é sua ligação com Alessandria? Eco - Não é difícil voltar para lá, porque Alessandria fica a uns 100 quilômetros de Milão. Aliás foi um dos motivos que escolhi morar por aqui: é perto de Bolonha e de Alessandria. Quando volto, sou recebido como uma celebridade. Eu e o chapéu Borsalino, somos produção de Alessandria! Reencontro velhos amigos no clube da cidade, sou homenageado, bato muito papo. Não tenho mais parentes próximos. É sempre emocionante. - See more at: http://www.leioeu.com.br/2014/02/a-internet-e-perigosa-para-o-ignorante.html?m=1#sthash.l1QyUHVY.rT1cMo3O.dpuf

quarta-feira, março 26, 2014

DOMINGO DE ANGOLA


Para mim, domingo de Angola é paraíso. É um Céu. Colorido. É moamba de peixe ou caril de galinha de Quilengues. Domingo de Angola não tem rival no mundo. Começa na praia e acaba na sesta. Não tem Sporting-Benfica, nem linha de Sintra, não tem passeio a Vila Franca. Não tem touros, nem Cacilhas, nem caracóis no Ginjal. Domingo de Angola, para mim, é o melhor domingo do mundo que eu conheço – e que já não é nada pequeno, benza-o Deus.
Moamba para mim é um ritual. Tem pirão de fuba de mandioca – que eu sou do Sul, usa-se de milho, mas eu prefiro de mandioca à moda do Norte, à moda de Malanje, tal qual no Uíje – mete farinha de pau e obrigado velha que está uma delícia. Tem de ser comido à sombra de um palmeira ou coqueiro, debaixo de uma mandioqueira ou mangueira quando é no interior. Porque coqueiro só no litoral. É por estas e por outras que eu gosto do domingo em Angola. Domingo de Branco. Domingo de Preto. Domingo de todos, domingo de missa, de padre, de domingo.
A verdadeira moambada, aquela que é feita de galinha tenra, tão tenra que sabe a peito de virgem, a moamba verdadeira, tem de ser do cacho primeiro da palmeira do quintal. O molho será apurado pelo velho cozinheiro, que foi mestre dos pais, dos filhos e dos filhos dos filhos. Tem molho que é de “come e arrebenta e o que sobra vai no mar” como dizia o poeta patrício e mulato Viriato da Cruz, no “Sô Santo”. Moamba verdadeira, repito, só se come duas ou três vezes na vida. É preciso estar-se em estado de graça. Estar-se com Nosso Senhor e com os anjos.
Moamba para mim, é saudade, hoje que estou longe, hoje que estou perto. Estou perto de estar tão longe. Não compreendem leitores? A gente está longe e tem saudades. Antes de adormecer, pela noite, vem a lembrança, da pitangueira do quintal, da Rosa Lavadeira, do amo-seco Canivete que falava “axim” à moda de Viseu, e tudo isso aparece nítido, cada vez mais claro e puro como certas horas da madrugada da Serra do Lépi. A primeira vez que comi moamba, dela me lembro como da primeira vez que beijei mulher, do primeiro desafio de futebol, do primeiro amor nocturno na areia da praia, com mulher de verdade. A primeira moamba, lembra-se como se lembra a primeira ida à escola.
O travo nativo do cacho de déndém, que leva meses a fazer-se, até os frutos terem a tonalidade da queimada. Metade o clarão no céu da noite, a outra metade, escuro, um escuro de breu. Tudo isso o sabor tropical junta naquele fruto, que tem brisa do mar, sol de praia, frescura de casuarina, amor de mulata. O coconote e as influências indianas nadando no molho. Tem jindungo, a moamba genuína, aquela que cheira a sândalo, que escorre do canto da boca, do patrício apaixonado, de olho rútilo e lábio trémulo. Mas a galinha, essa tem de ser de Quilengues, magra e criada no mato, quase sem penas, galinha de sanzala, galinha de preto, que é como quem diz, de pobre. Isto está divinal, velha, eu um dia volto. Se entra a erva-doce, zumba que zumba e farinha de pau, oh, céus, oh, Mãe, isto não é moamba, isto é poesia. Literatura.
Mas tem de ser comida no terreiro da casa de adobe do bairro velho. Tem de ser comida em ritual, na casa de adobe com telhado de zinco da estrada da escola da Liga, ou num dos Muceques de Luanda, por sobre as areias avermelhadas do Prenda ou do Burity.
Depois a altura do peito de mulher na moleza da carne ou do peixe. Se é “roncador”, aka, é peixe da costa e sabe que sabe tão bem. Mas de galinha é melhor. Galinha de Quilengues escanifrada, repito. Galinha de pobre.
Fico por momentos em êxtase, as mãos sobre o estômago, lembrando o terreiro da família Gamboa lá de Luanda onde comi uma coisa dessas uma vez há muitos anos. Num bairro velho de Benguela, eu estarei ainda um dia com meus companheiros dos tempos de eu menino, comendo moamba e bebendo quissângua à sombra do bambu do Edelfride – na casa do Edelfride.
Moamba é riqueza de pobre e fraqueza de rico. Entra em palácios sem pedir licença, com o mesmo à vontade com que se senta nos quintais com sombra de mangueira e entra em terrina de esmalte, prato de esmalte, caneca de esmalte, garfo de alumínio. Velho sonho de poeta, lembrança de castimbala, moambada para mim é saudade e sonho, recordação e batuque, história de amor.
Um dia, quando eu voltar, hei-de comer uma moambada de peixe ou de carne, à sombra de um cajueiro, num Muceque de Luanda, moamba do cacho primeiro da palmeira do quintal, não é velha? Depois de muito beber dormirei a sesta. E hei-de gostar de ouvir um desses rapazes do meu tempo, feito velho de cabelos brancos, recitar baixinho enquanto adormeço, a balada do Viriato:
“… Kitoto e batuque pró povo lá fora champanha, ngaieta tocando lá dentro…
Garganta cantando:
“Come e arrebenta
E o que sobra vai no mar…”
Para mim, domingo de Angola é isso tudo. Um Céu colorido. Uma moamba de peixe. Uma noite de luar.
… não tem Sporting-Benfica, não tem touros, nem caracóis no Ginjal…

Ernesto Lara Filho,poeta benguelense e cronista

terça-feira, março 18, 2014

Eduardo Lourenço

Eduardo Lourenço apresenta uma bela síntese sobre a ignorância e a perplexidade das elites intelectuais portuguesas face ao actual estado de coisas da “modernidade”. Uma síntese brilhante de que tira (pelo menos na notícia…) uma conclusão muito errada: recomenda “paciência” quando devia recomendar estudo sério e coragem intelectual para navegar e descobrir novos oceanos de saber, capazes de elucidar e apontar saídas para o que o deixa em estado perplexo… Lourenço acaba por fazer não a radiografia destes tempos e seus problemas mas a radiografia da incapacidade da nossa “elite intelectual” e da sua pobreza conceptual. Por exemplo, ele constata muito bem que vivemos em «estado de guerra permanente», mas nada aponta como campo conceptual para “ler” e colocar em perspectiva esse «estado de guerra permanente». Ora, esses campos conceptuais existem. Pode-se tomar posição face a esses campos, pode-se até fazer a sua crítica radical e até recusá-los. O que não se pode é desconhece-los… E é esse desconhecimento que se constata neste encontro em que Eduardo Lourenço apresentou a sua bela síntese sobre a ignorância e a perplexidade das elites intelectuais portuguesas.

Eduardo Lourenço: “Fomos invadidos por uma espécie de vampiros”

O ensaísta Eduardo Lourenço disse hoje que houve uma invasão por «uma espécie de vampiros», que são quem controla o sistema inventado pela modernidade, vivendo-se agora um «apocalipse indireto» em «estado de guerra permanente».

Durante a primeira mesa da 15.ª edição do Correntes d´Escritas, na Póvoa de Varzim, sob o título «Pensamentos não são correntes de ninguém», Eduardo Lourenço disse: «Dá a impressão de que, de repente, fomos invadidos, não por uns castelhanos arcaicos nossos vizinhos e que são nossos irmãos e primos, mas por uma espécie de vampiros como aqueles que o cinema de Hollywood ilustra. Não é por acaso que o tema dos vampiros se tornou um tema da moda, os vampiros são emissários da morte, é como se estivéssemos a viver uma espécie de apocalipse indireto».
O autor, que disse não acreditar que o tempo desta «espécie de submissão mansa» vá perdurar, ressalvou não querer contribuir para algo como uma «depressão de segundo grau, por conta dos outros».
«Não sei se é um comportamento muito português dormir em cima daquilo que nos ameaça profundamente e nos põe problemas que não podemos resolver esperando que, com o tempo, com um pouco de sorte, acabemos por sair desta espécie de atoleiro em que estamos mergulhados», acrescentou.
«Os vampiros não são tão vampiros como isso, são pessoas reais. São as pessoas que controlam o sistema que a modernidade foi inventando pouco a pouco, com os seus novos meios de produção, que aumentaram efetivamente de maneira fantástica a possibilidade que os homens têm de aceder a um certo número de coisas que são importantes», disse Eduardo Lourenço, já em resposta a questões do público.
O autor declarou que a televisão é hoje «o objeto mais importante», tendo o «espaço público desaparecido», o que deu origem a um momento em que «tudo se passa na televisão, as intervenções dos comentadores na televisão são mais importantes do que a realidade».
Eduardo Lourenço lamentou que a política já não seja uma «política real».
«Passámos […] para um tempo em que aparentemente as guerras já não têm lugar ou são guerras de uma outra espécie, são quase guerras virtuais como se fossem cinema puro, embora os mortos não sejam cinema nenhum. Passámos para um tempo em que estamos – não parece à primeira vista – num mundo em estado de guerra permanente no interior do sistema, não há nenhuma grande produção que não esteja em guerra com uma outra ao lado», afirmou o vencedor do prémio Camões de 1996.
Eduardo Lourenço disse ainda não pensar nada sobre o futuro, uma vez que «se pensasse no futuro era o dono do futuro».
Assim, o ensaísta, que constatou saber o que é estar «à beira do abismo» por estar próximo do seu próprio, apelou a que se tenha paciência, antes de entrar «enfim na terra da promissão».

quarta-feira, março 12, 2014

Manifesto dos 70

Preparar a Reestruturação da Dívida
 Para Crescer Sustentadamente
Nenhuma estratégia de combate à crise poderá ter êxito se não conciliar a resposta à questão da dívida com a efectivação de um robusto processo de crescimento económico e de emprego num quadro de coesão e efectiva solidariedade nacional. Todos estes aspectos têm de estar presentes e actuantes em estreita sinergia. A reestruturação da dívida é condição sine qua non para o alcance desses objectivos.
O que reúne aqui e agora os signatários, que têm posições diversas sobre as estratégias que devem ser seguidas para responder à crise económica e social mas que partilham a mesma preocupação quanto ao peso da dívida e à gravidade dos constrangimentos impostos à economia portuguesa, é tão somente uma tomada de posição sobre uma questão prévia, a da identificação das condições a que deve obedecer um processo eficaz de reestruturação.
O que a seguir se propõe tem sempre em atenção a necessidade de prosseguir as melhores práticas de rigorosa gestão orçamental no respeito das normas constitucionais bem como a discussão de formas de reestruturação honrada e responsável da dívida no âmbito de funcionamento da União Económica e Monetária, nos termos adiante desenvolvidos.

A Actual Dívida é Insustentável na Ausência de Robusto e Sustentado Crescimento
A crise internacional iniciada em 2008 conduziu, entre outros factores de desequilibrio, ao crescimento sem precedentes da dívida pública. No biénio anterior, o peso da dívida em relação ao PIB subira 0.7 pontos percentuais, mas elevou-se em 15 pontos percentuais no primeiro biénio da crise. No final de 2013 a dívida pública  era de 129% do PIB e a líquida de depósitos de cerca de 120%. O endividamento externo público e privado ascendeu a 225% do PIB e o endividamento consolidado do sector empresarial a mais de 155% do PIB. A resolução da questão da dívida pública não só se impõe pelas suas finalidades directas como pela ajuda que pode dar à criação de condições favoráveis à resolução dos problema específicos do endividamento externo e do sector empresarial, que são igualmente graves.
 A dívida pública tornar-se-á insustentável na ausência de crescimento duradouro significativo: seriam necessários saldos orçamentais primários verdadeiramente excepcionais, insusceptíveis de imposição prolongada.
A nossa competitividade tem uma base qualitativa demasiado frágil para enfrentar no futuro a intensificação da concorrência global. É preciso uma profunda viragem, rumo a especializações competitivas geradas pela qualidade, pela inovação, pela alta produtividade dos factores de produção envolvidos e pela sagaz capacidade de penetração comercial em cadeias internacionais ou nichos de mercado garantes de elevado valor acrescentado.
Trata-se certamente de um caminho difícil e de resultados diferidos no tempo. A sua materialização exige continuidade de acção, coerência de estratégias públicas e privadas, mobilização contínua de elevado volume de recursos, bem como de cooperação nos mais diversos campos de actividade económica, social e política. Será tanto mais possível assegurar a sustentabilidade da dívida, quanto mais vigoroso for o nosso empenho colectivo no aproveitamento das oportunidades abertas pela reestruturação no sentido de promover esse novo padrão de crescimento.

É Imprescindível Reestruturar a Dívida para Crescer, Mantendo o Respeito pelas Normas Constitucionais
Deixemo-nos de inconsequentes optimismos: sem a reestruturação da dívida pública não será possível libertar e canalizar recursos minimamente suficientes a favor do crescimento, nem sequer fazê-lo beneficiar da concertação de propósitos imprescindível para o seu êxito. Esta questão é vital tanto para o sector público como para o privado, se se quiser que um e outro cumpram a sua missão na esfera em que cada um deles é insubstituível.
Sem reestruturação da dívida, o Estado continuará enredado e tolhido na vã tentativa de resolver os problemas do défice orçamental e da dívida pública pela única via da austeridade. Deste modo, em vez de os ver resolvidos, assistiremos muito provavelmente ao seu agravamento em paralelo com a acentuada degradação dos serviços e prestações provisionados pelo sector público. Subsistirá o desemprego a níveis inaceitáveis, agravar-se-á a precariedade do trabalho,  desvitalizar-se-á o país em consequência da emigração de jovens qualificados, crescerão os elevados custos humanos da crise, multiplicar-se-ão as desigualdades, de tudo resultando considerável reforço dos riscos de instabilidade política e de conflitualidade social , com os inerentes custos para todos os portugueses.
Por outro lado, a economia sofrerá simultaneamente constrangimentos acrescidos, impeditivos em múltiplas dimensões do desejável crescimento do investimento, da capacidade produtiva e da produtividade, nomeadamente pela queda da procura e desestruturação do mercado, diminuição da capacidade de autofinanciamento, degradação das condições de acesso, senão mesmo rarefacção do crédito da banca nacional e internacional, crescente liquidação de possibilidades competitivas por défice de investimento e inovação. Por maioria de razões, o ganho sustentado de posições de referência na exportação ficará em  risco e inúmeras empresas ver-se-ão compelidas a reduzir efectivos.
Há que encontrar outros caminhos que nos permitam progredir. Esses caminhos passam pela desejável reestruturação responsável da dívida através de processos inseridos no quadro institucional europeu de conjugação entre solidariedade e responsabilidade.
Há alternativa

A Reestruturação Deve Ocorrer no Espaço Institucional Europeu
No futuro próximo, os processos de reestruturação das dívidas de Portugal e de outros países - Portugal não é caso único - deverão ocorrer no espaço institucional europeu, embora provavelmente a contragosto, designadamente  dos responsáveis alemães. Mas  reacções a contragosto dos responsáveis alemães não se traduzem necessariamente em posições de veto irreversível. Veja-se o que vem sucedendo com a Grécia, caso irrepetível, de natureza muito diferente e muito mais grave, mas que ajuda a compreender a lógica comportamental dos líderes europeus. Para o que  apontam é para intervenções que pecam por serem demasiado tardias e excessivamente curtas ou desequilibradas. Se este tipo de intervenções se mantiver, a União Europeia correrá sérios riscos.
Portugal, por mais que cumpra as boas práticas de rigor orçamental de acordo com as normas constitucionais - e deve fazê-lo sem hesitação, sublinhe-se bem - não conseguirá superar por si só a falta dos instrumentos que lhe estão interditos por força da perda de soberania monetária e cambial. Um país aderente ao euro não pode ganhar competitividade através da política cambial, não lhe é possível beneficiar directamente da inflação para reduzir o peso real da sua dívida, não pode recorrer à política monetária para contrariar a contracção induzida pelo ajustamento e não tem Banco Central próprio que possa agir como emprestador de último recurso. Mas se o euro, por um lado, cerceia a possibilidade de uma solução no âmbito nacional, por outro convoca poderosamente a cooperação entre todos os Estados-membros aderentes. A razão é simples e incontornável: o eventual incumprimento por parte de um país do euro acarretaria, em última instância,  custos dificeis de calcular mas provavelmente elevados, incidindo sobre outros países e sobre o próprio euro. Prevenir as consequências nefastas desta eventualidade é, de facto, um objectivo de interesse comum que não pode ser ignorado.
 Após a entrada em funções da nova Comissão Europeia, deverá estar na agenda europeia o início de negociações de um acordo de amortização da dívida pública excessiva, no âmbito do funcionamento das instituições europeias Na realidade, esse processo já foi lançado e em breve iniciará o seu caminho no contexto do diálogo inter-institucional europeu, entre Comissão, Conselho e Parlamento.É essencial que desse diálogo resultem condições fundamentais para defender sem falhas a democracia nos Estados-membros afectados, como valor fundacional da própria União.
 
Três Condições a que a Reestruturação Deve Obedecer
 A Comissão Europeia mandatou um Grupo de Peritos para apresentar, designadamente, propostas de criação de um fundo europeu de amortização da dívida. O seu relatório será publicado antes das próximas eleições para o Parlamento Europeu. Essas propostas juntar-se-ão a várias outras formuladas nos últimos quatro anos. Recorde-se que a presente tomada de posição visa apenas a questão prévia da identificação das condições a que deve obedecer um processo eficaz de reestruturação Serve-nos de guia o exposto sobre a dívida portuguesa, mas pensamos que as condições adiante sugeridas defendem também os melhores interesses comuns dos países do euro.
Tendo presente que a capacidade para trazer a dívida ao valor de referencia de 60% do PIB depende fundamentalmente de três variáveis (saldo orçamental primário, taxa de juro implícita do stock de dívida e taxa nominal de crescimento da economia), identificam-se três condições a que deve obedecer a reestruturação da dívida.
1) Abaixamento da taxa média de juro
A primeira condição é o abaixamento significativo da taxa média de juro do stock da dívida, de modo a aliviar a pesada punção dos recursos financeiros nacionais exercida pelos encargos com a dívida, bem como ultrapassar o risco de baixas taxas de crescimento, difíceis de evitar nos próximos anos face aos resultados diferidos das  mudanças estruturais necessárias. O actual pano de fundo é elucidativo: os juros da dívida pública directa absorvem 4.5%. do PIB. Atente-se ainda no facto de quase metade da subida da dívida pública nos últimos anos ter sido devida ao efeito dos juros.
2) Alongamento dos prazos da dívida
A segunda condição é a extensão das maturidades da dívida para 40 ou mais anos. A nossa dívida tem picos violentos. De agora até 2017 o reembolso da dívida de médio e longo prazo atingirá cerca de 48 mil milhões de euros. Alongamentos da mesma ordem de grandeza relativa têm respeitáveis antecedentes históricos, um dos quais ocorreu em benefício da própria Alemanha. Pelo Acordo de Londres sobre a Dívida Externa Alemã, de 27 de Fevereiro de 1953, a dívida externa alemã anterior à II Guerra Mundial foi perdoada em 46% e a posterior à II Guerra em 51,2%. Do remanescente, 17% ficaram a juro zero e 38% a juro de 2.5%  Os juros devidos desde 1934 foram igualmente perdoados. Foi tambem acordado um período de carência de 5 anos e limitadas as responsabilidades anuais futuras ao máximo de 5% das exportações no mesmo ano.  O último pagamento só foi feito depois da reunificação alemã, cerca de 5 décadas depois do Acordo de Londres. O princípio expresso do Acordo  era assegurar a prosperidade futura do povo alemão, em nome do interesse comum. Reputados historiadores económicos alemães são claros em considerar que este excepcional arranjo é a verdadeira origem do milagre económico da Alemanha.  O Reino Unido, que alongou por décadas e décadas o pagamento de dívidas suas, oferece outro exemplo. Mesmo na zona euro, já se estudam prazos de 50 anos para a Grécia. Portugal não espera os perdões de dívida e a extraordinária cornucópia de benesses então concedida à Alemanha mas os actuais líderes europeus devem ter presente a  razão de ser desse Acordo: o interesse comum. No actual contexto,  Portugal pode e deve, por interesse próprio, responsabilizar-se pela sua dívida, nos termos propostos, visando sempre assegurar o crescimento económico e a defesa do bem-estar vital da sua população, em condições que são também do interesse comum a todos os membros do euro.
3) Reestruturar, pelo menos, a dívida  acima de 60% do PIB
Há que estabelecer qual a parte da dívida abrangida pelo processo especial de reestruturação no âmbito institucional europeu. O critério de Maastricht fixa o limite da dívida  em 60% do PIB. É diversa a composição e volume das dívidas nacionais. Como é natural, as soluções a acordar devem reflectir essa diversidade. A reestruturação deve ter na base a dívida ao sector oficial, se necessário complementada por outras responsabilidades de tal modo que a reestruturação incida, em regra, sobre dívida acima de 60% do PIB.  Nestes termos, mesmo a própria Alemanha poderia beneficiar deste novo mecanismo institucional, tal como vários outros países da Europa do Norte.
 Os mecanismos da reestruturação devem instituir processos necessários à recuperação das economias afectadas pela austeridade e a recessão, tendo em atenção a sua capacidade de pagamento em harmonia com o favorecimento do crescimento económico e do emprego num contexto de coesão nacional. Se forem observadas as três condições acima enunciadas, então será possível uma solução no quadro da União e da zona euro com um aproveitamento máximo do quadro jurídico e institucional existente.
A celeridade da aprovação e entrada em funcionamento do regime de reestruturação é vital. A única maneira de acelerar essa negociação é colocá-la desde o início no terreno firme do aproveitamento máximo da cooperação entre Estados-membros, de modo a acolher o alongamento do prazo de reestruturação, a necessária redução de juros e a gestão financeira da reestruturação, tendo em atenção as finalidades visadas pelos mecanismos de reestruturação.
 Cada país integraria em conta exclusivamente sua a dívida a transferir e pagaria as suas responsabilidades, por exemplo, mediante a transferência de anuidades de montantes e condições pré-determinadas adequadas à capacidade de pagamento do devedor. As condições do acordo a estabelecer garantiriam a sua estabilidade, tendo em conta as responsabilidades assumidas por cada Estado-membro. Deste modo, a uma sã e rigorosa gestão orçamental no respeito das normas constitucionais acresceria o contributo da cooperação europeia assim orientada. As condições relativas a taxas de juro, prazos e montantes abrangidos devem ser moduladas conjugadamente, a fim de obter a redução significativa do impacto dos encargos com a dívida no défice da balança de rendimentos do país e a sustentabilidade da dívida pública, bem como a criação de condições decisivas favoráveis à resolução dos constrangimentos impostos pelo endividamento do sector empresarial público e privado e pelo pesado endividamento externo.
O processo de reestruturação das dívidas públicas já foi lançado pela Comissão Europeia.Fomos claros quanto a condições a que deve obedecer esse processo. A sua defesa desde o o ínicio é essencial. O nosso alheamento pode vir a ser fatal para o interesse nacional.
A reestruturação adequada da dívida abrirá uma oportunidade ímpar, geradora de responsabilidade colectiva, respeitadora da dignidade dos portugueses e mobilizadora dos seus melhores esforços a favor da recuperação da economia e do emprego e do desenvolvimento sustentavel com democracia e responsabilidade social.
Por quanto ficou dito, os signatários reiteram a sua convicção de que a estratégia de saída sustentada da crise exige a estreita harmonização das nossas responsabilidades em dívida com um crescimento duradouro no  quadro de reforçada coesão e solidariedade nacional e europeia.
Estes são os termos em que os signatários apelam ao debate e à preparação, em prazo útil, das melhores soluções para a reestruturação da dívida.